domingo, 8 de junho de 2008

DAS DORES





É pequeno burguês, mas tenho de falar da Dasdores



É sempre injusto considerar que aquela moça, a empregada doméstica de sua casa, não raciocina bem. Eu sei. Me sinto ultra mal de pensar assim e nem queria falar neste assunto, porque no fundo esta atitude é tão país de terceiro mundo! É tão colonizador sobre colonizado indígena! Pô, ter empregada já é coisa de burguês-feladaputa e eu ainda venho aqui chorar pitanga?


Mas digamos que não seremos nós, nos próximos dias corridos do mês, que deixaremos mais uma empregada sem salário para pagar o aluguel e a 36ª prestação do quarto completo das Casas Bahia. Vamos admitir - e que nenhum estudante de ciências sociais da USP nos ouça: não é fácil. Não é fácil decodificar os passos errantes dos neurônios destas valorosas guerreiras do pano úmido. Sem querer generalizar, longe de mim, mas a cena é familiar e é a seguinte:


De manhã, atrasada pra reunião, você vai à cozinha e com determinação e objetos didáticos, ajeita tudo na pia pra que fique claro. Que não paire dúvida. Que não haja qualquer motivo para ela decidir por conta própria. Você fala, fala, fala. Retoma, explica de novo.


O relógio corre, mas você sabe que é preciso insistir. Ela nem respira. Ela está ali, ao que tudo indica, de corpo e alma, a despeito do olhar paradão. Você pergunta: entendeu? Ela mexe a cabeça que sim. Tchau, lá vai você para a selva capitalista. Ela fica. Fica e divide o que você disse com o que ela acha que ouviu, noves fora nada, somado com o que a prima mandou pelo telefone – pronto: é o que vai rolar do jantar que você passou uma hora explicando.


Então você, que pediu para ela cozinhar a alcachofra sem tempero algum e assar o filé mignon com todos as ervas que separou, chega em casa e encontra a alcachofra cheia de ervas esturricada no forno e o filé mignon esfarelando na panela de pressão sem tempero. Fala sério.


Atire a primeira pedra quem...Seus filhos intercedem, dizendo que ela não comeu proteína na infância, e te fazem sentir uma patricinha mesquinha.Enquanto você, burguesa de unhas feitas, só queria chegar em casa e encontrar a alcachofra cozida e o filé assado. É pedir demais?


Aí, é fim de semana. Você vai procurar o shorts de corrida que usou no sábado passado. Faz tempo que ele se foi nas mãos de Dasdores e isso te inquieta.


Percebe que errou na condução da lavagem desta peça. Não usou mapas estratégicos, bonecos de massinha e jogos de colorir. Fica tensa ao se aproximar do armário onde o shorts entra e sai há 10 anos sem problemas. Mentalmente visualiza o pobrezinho sozinho com a Dasdores na lavanderia. Sem condições de gritar por socorro. Totalmente à mercê do raciocínio tortuoso da Dasdores.


Pensa nas coisas que ele, aquele pequeno shorts que você adora, que não se encontra mais à venda desde os anos 90, que é curto, mas cobre bem a bunda, é justo, mas maleável para correr, pode ter sofrido. Ele não podia ser passado a ferro, não podia ir na máquina, não podia secar à sombra. Você imagina de onde a desgraça poderá te acertar.


É sábado de manhã e você já está trincando os dentes. Sua adrenalina cai no sangue quando você abre a gaveta e... não há aquela, nem qualquer outra peça em seu lugar habitual. Olha na gaveta de cima, de seu marido, e não há uma cueca disponível. Seu coração dispara, suas mãos crispam.


Esquece o shorts. Que se dane o shorts :– Cadê a porra daquele monte de roupa minha que devia estar aqui? Cadê minha camiseta branca? Onde ela pôs a calça de lycra que eu ia usar segunda? Se ela não me matar hoje, mato esta mulher, juro!


Você sai abrindo portas e gavetas e rememorando o discurso que fez na semana passada - eu disse, Dasdores, se você não sabe onde ficam as roupas, deixe tudo ali em cima; naquele quarto, que a gente se incumbe de guardar.


Mas quê? Nada no lugar. Ela tomou a decisão de melhorar o cazzo da logística da casa. Você revira os armários e a área de serviço em busca das roupas lavadas durante a semana. Em vão. Senta num banquinho de canto e chora de “nervo”.


Enfim, exausta e com início de angina, tenta pensar como ela pode ter pensado. Vai até o armário do último quarto. Apóia os pés nas gavetas para chegar ao ponto mais alto e inimaginável para alguém guardar roupas - a terra de ninguém escura e solitária onde jaz a caixa da árvore de natal.


Sim, sim: lá estão montinhos de roupas dobradinhas. Passadinhas. Tudo, absolutamente tudo, o que ela conseguiu amealhar durante a semana. Lençóis, toalhas, toalha de mesa, que ela fez questão de colocar como você disse: “ali em cima, no quarto”. Não em cima da cama; não em cima da cômoda; lá em cima, no armário do esquecimento, onde as roupas podiam ser encontradas às vésperas do natal. E nós estamos em abril.


Aí alguém me pergunta por que não mando a Dasdores embora? Pois é, eu me pergunto isto todos os dias. Mas, sabe, ela é boazinha, coitada. Honesta, tem filhos em idade escolar e um marido beberrão. Também, ficar sem empregada e ensinar tudo de novo pra outra, é duro... Por mais politicamente incorreto que seja meu discurso, convenhamos - é duro!